Burlas com pagamentos crescem na rede Multibanco;

Operadores enviam referências falsas a coberto do anonimato
Burlas com pagamentos crescem na rede Multibanco
O crescimento dos pagamentos através dos smartphones e outros dispositivos móveis está a propiciar um aumento das situações de burla através da rede Multibanco. A maior parte de vítimas são particulares e empresas que através dos canais digitais recebem referências para pagamento com identidade falsa, simulando valores em dívida à EDP e outras empresas com elevado número de clientes.
O envio massivo de referências de pagamento Multibanco com identidade falsa está na origem da maioria das burlas que são participadas às autoridades. A disponibilização de meios digitais permite fazer o envio de centenas de milhares de referências de pagamento através de sms e e-mail, o que se traduz num valor crescente de pagamentos indevidos, generalizando o crime de burla. O sistema Multibanco, ao ser transversal a todos os bancos que operam em Portugal, facilita a prática deste tipo de burla, ao contrário no que acontece nos países europeus onde não existe um sistema único a integrar os movimentos de todos os bancos.
Por outro lado, não são visíveis medidas concretas de proteção dos clientes para contrariar o aumento da ocorrência deste tipo burlas.
Pelo contrário, os números de entidade Multibanco associados a casos de burla por referências de pagamento falsas continuam ativos e a proporcionar a emissão de mais referências e a ocorrência de novas burlas.
Segundo foi possível apurar, o sistema gerido pela SIBS, que permite aos operadores financeiros a emissão de referências de pagamento por parte dos operadores financeiros, é permissivo quanto à utilização das empresas beneficiárias com sede em Portugal ou no estrangeiro, proporcionando acesso fácil em termos de obtenção de referências de pagamento, bastando o fornecimento de número de conta bancária e NIF. Desta forma, é possível a qualquer entidade que não efetue transações em Portugal, obter e fazer o envio de referências de pagamento no valor de dezenas de milhões de euros.
Por outro lado, de acordo com as informações que conseguimos obter junto do Banco de Portugal e da SIBS não estão previstas novas medidas de prevenção e proteção dos clientes, nomeadamente, um período de retenção dos pagamentos no sistema financeiro para evitar a transferência dos fundos nos casos em que a burla é detetada pouco tempo após ter sido efetuada. Neste momento, o valor do pagamento por referência é transferido de forma imediata, sem possibilidade de ser revogado. Este sistema de transferência imediata de fundos favorece a prática das burlas e contraria as normas aplicadas aos débitos bancários onde é sempre possível a revogação pelo prazo de 60 dias, por iniciativa do cliente.
O pagamento imediato também contraria as boas práticas internacionais seguidas por entidades como a Visa, ou a Amazon, onde existe sempre uma retenção do pagamento ao fornecedor durante 14 dias após a entrega do produto, o que evita a fraude e protege os clientes nos casos em que os produtos não correspondem ao previsto.
Também não existe nem está prevista a prestação de garantia por parte dos utilizadores beneficiários de referências Multibanco. A obrigação de prestar caução ou garantia contribuiria para reduzir a emissão de referências falsas e compensar as vitimas de fraude.
 
Autores das burlas atuam a coberto do anonimato
 
A maioria das queixas apresentadas por burla com falsas referências Multibanco envolvem os serviços da HiPay. De acordo com uma fonte da empresa essa proporção elevada de ocorrências deve-se apenas à “elevada quota de mercado” na emissão de referências Multibanco que a HiPay tem em Portugal.
Na sequência do número elevado de queixas apresentadas às autoridades, o Gabinete de Cibercrime emitiu a Nota Prática nº 25/2022, de 25 de novembro onde é referido no ponto 7: “O Ministério Público tem crescentemente recebido denúncias por práticas fraudulentas nas quais os agentes criminosos utilizam referências Multibanco geradas pela HiPay. Este método de pagamento tem sido utilizado para cometer crimes, sendo, pois, frequentemente necessário obter elementos de prova quanto aos eventuais pagamentos efetuados”.
“As referências Multibanco geradas pela HiPay funcionam na rede Multibanco. Esta, por sua vez, é gerida pela SIBS (anteriormente “Sociedade Interbancária de Serviços” e atualmente “SIBS Forward Payment Solutions”)” – acrescenta o ponto 8 da mesma Nota Pratica.
Ao ser confrontada com as situações de burla, a HiPay afirma que as vítimas devem fazer a participação às autoridades policiais e recusa-se a identificar as empresas que receberam os pagamentos através de falsas referências.
Segundo a HiPay, não é possível revelar às vítimas a identidade das empresas que receberam os pagamentos por burla, porque as normas do RGPD não o permitem. E acrescenta que de nada serviria às vitimas saber o nome das empresas que as burlaram.
Ao indicar às vitimas que o único caminho para as vítimas é a participação às autoridades a HiPay não revela interesse em tomar conhecimento imediato das situações de burla que envolvem as referências emitidas, nem de suspender clientes suspeitos, preferindo aguardar a comunicação posterior através das autoridades policiais.
Os serviços da HiPay também são recomendados por entidades que se dedicam ao jogo on-line, como é o caso da Feeling Lucky Portugal. No site desta organização é destacado que o HiPay disponibiliza um método de pagamento destinado exclusivamente às empresas através de referências multibanco, referências Payshop, débitos diretos e transferências bancárias.
“Se um qualquer casino online aceitar como método de depósito as transferências por multibanco, na altura de receber os fundos depositados pelos clientes nas suas respetivas contas de jogo, a entidade (neste caso a empresa por trás do website) receberá os fundos através da sua conta HiPay. Esta conta está por sua vez naturalmente associada a uma conta bancária normal e, visto que o HiPay é um método à escala global, a empresa e a conta bancária podem estar sediadas em qualquer país” – refere o mesmo site.
A mensagem evidencia a proteção do anonimato da empresa beneficiária e a facilidade de acesso por parte empresa e contas bancárias no estrangeiro.
Banco de Portugal não prevê possibilitar a revogação de pagamentos na rede Multibanco
Em resposta à “Vida Económica”, o Banco de Portugal afasta a possibilidade de ser criada, em relação aos pagamentos por referência Multibanco, a possibilidade de revogação à semelhança do que acontece com os débitos em conta, que protege os clientes em caso de cobranças indevidas.
“Afigura-se-nos que a possibilidade de retenção dos fundos a que fazem menção não encontra respaldo no enquadramento legal aplicável, uma vez que as operações de pagamento consideram-se autorizadas quando o ordenante consente na sua execução e, em regra, tornam-se irrevogáveis no momento em que o prestador de serviços de pagamento do ordenante recebe esse consentimento” – afirmou uma fonte do Banco de Portugal.
Em relação à HiPay, o Banco de Portugal refere que a responsabilidade pela criação, gestão e manutenção dos códigos relativos às “entidades beneficiárias” de pagamentos efetuados ao abrigo da funcionalidade “pagamento de serviços/compras”, disponível nos Caixas Automáticos Multibanco e no homebanking, está cometida à SIBS Forward Payment Solutions, S.A. (SIBS FPS).
 “Não obstante, fazemos notar que a entidade beneficiária do “pagamento de serviços/compras” poderá não ser o último destinatário dos fundos. Pode suceder que a empresa que corresponde a “entidade” seja um prestador de serviços de pagamento com o qual o último destinatário dos fundos (v.g., um comerciante) contrata a receção de pagamentos pela via do “pagamento de serviços/compras”. Nestes casos, o prestador de serviços de pagamento que corresponde à “entidade” toma posse do montante pago pelo cliente e posteriormente transfere-o para o beneficiário efetivo dos fundos.
 Assim, embora possa existir um número crescente de participações por burla que envolvem a HiPay, SAS, tal não significa que essa entidade tenha sido a promotora das situações reportadas” – acrescenta o Banco de Portugal.
Ainda de acordo com o Banco de Portugal,  a HiPay, SAS é uma instituição de pagamento com sede em França que se encontra a operar em Portugal em regime de livre prestação de serviços, não competindo ao Banco de Portugal  supervisionar as atividades exercidas neste regime por entidades autorizadas noutros Estados-Membros da União Europeia. Essa será a competência da  autoridade de supervisão de França.
Burlas com referências de pagamento não ocorrem em França
Ao contrário do que acontece em Portugal, a HiPay não está associada em França a emissão de falsas referências de pagamento. Pelo facto de não haver um sistema único semelhante ao Multibanco, não seria possível emitir referências de pagamento à mesma escala com que é feito em Portugal. E as regras de controlo e supervisão das entidades são também mais apertadas.
A HiPay tem sede em França e está cotada na Bolsa, embora registe um volume muito reduzido de transações.
É uma empresa pequena para o mercado francês com uma capitalização bolsista de cerca de 27 milhões de euros. O volume de negócios tem vindo a crescer tendo atingido 58 milhões de euros e 2022. No entanto, a HiPay é fortemente deficitária. Nos últimos 5 anos acumulou mais de 28 milhões em resultados negativos ultrapassando em perdas o valor atual da própria empresa.

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