ACIDENTE DE VIAÇÃO - Comissão - gerente
Referências: Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05.07.2012
Fonte: site do STJ - www.dgsi.pt
Fonte: site do STJ - www.dgsi.pt
A decisão do acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, em 05 de julho de 2012, foi sumariada do seguinte modo:
"I- É patente e inarredável que se verifica uma subordinação jurídica do gerente (ainda que simultaneamente sócio) à sociedade, que não se confunde com o vínculo de subordinação jurídica do trabalhador à entidade patronal, no contrato individual de trabalho.
Tanto basta para que seja legítimo considerar-se verificada uma situação de comissão para efeitos do nº 3 do art. 503º do Código Civil, num caso como o que ora nos ocupa.
Nas palavras bem concretas e inequívocas do eminente e saudoso civilista que foi o Professor Antunes Varela, «o termo comissão tem aqui o sentido amplo de serviço ou atividade por conta e sob direção de outrem, podendo essa atividade traduzir-se tanto num ato isolado como numa função duradoura, ter caráter gratuito ou oneroso, manual ou intelectual, etc.».
II- A comissão pressupõe uma relação de dependência (droit de direction, de surveillance et de contrôle, na expressão da jurisprudência francesa) ou instruções a este, pois só essa possibilidade de direção é capaz de justificar a responsabilidade do primeiro pelos atos do segundo».
III- Não há dúvida de que os sócios gerentes, constituindo órgãos diretivos e sendo representantes de uma sociedade, participam na formação da vontade social, agindo no âmbito de um contrato de mandato e, em regra, não por contrato de trabalho subordinado (neste sentido, cfr. o Ac. deste Supremo Tribunal, de 29-09-1999 in BMJ, 489º-232).
Porém, tal participação não identifica a vontade psicológica do gerente com a vontade da pessoa coletiva, embora aquela se deva subordinar a esta, já que, como ensinou Raul Ventura, «na gerência das sociedades por quotas - como, aliás, na administração de todas as sociedades e até de pessoas coletivas, em geral - há que distinguir dois setores: a gestão (também chamada administração stricto sensu) e a representação».
IV- É na posição de gestão e/ou na prática de uma atividade executiva da sociedade, que o gerente, distinguindo-se sempre da própria sociedade que gere, conduz a viatura da sociedade em nome e no interesse desta, assim agindo como comissário, sendo comitente a sociedade proprietária do veículo.
Não se afigura essencial a alegação da factualidade integrante do poder de direção da sociedade (ordens, direção e fiscalização) sobre o gerente, pois tais factos integram o quadro legal da função de gerente, embora distinta da subordinação jurídico-laboral que permite distinguir o contrato de trabalho subordinado de outras figuras afins, tais como o contrato de prestação de serviço, de mandato, de agência, etc.
V- O que o art. 500º, nº 3, do Código Civil exige é a condução por conta de outrem e o sócio-gerente que conduz a viatura empresarial, numa atividade de distribuição de produtos da empresa que gere, desempenha tal atividade por conta de tal empresa." Neste recurso interposto junto do Tribunal do Supremo Tribunal de Justiça discute-se a seguinte matéria:
- Saber se quando o sócio-gerente de uma sociedade comercial conduz um veículo desta, em serviço da sociedade, existe uma relação de comissão entre a sociedade, dona da viatura, e o condutor, sócio-gerente daquela, para efeitos da presunção prevista no art. 503º, nº 3, do Código Civil.
Uma que não se fez prova da culpa de nenhum dos condutores intervenientes, ou a ora Autora, que era quem conduzia o veículo da sociedade panificadora, responde com base na presunção da sua culpa que não logrou ilidir como lhe competiria, caso se considere que a mesma conduzia na qualidade de comissária, ou se entende que tal relação comissória não existe, perfilhando a posição seguida pela 1ª Instância que, com base no disposto no art. 506º, nos 1 e 2, do Código Civil, efetuou a repartição da responsabilidade entre os dois condutores intervenientes, considerando igual a medida da contribuição de cada dos veículos para os danos, bem como a contribuição da culpa de cada um dos condutores.
A posição da Recorrente é a de negação de tal comissão, como claramente se constata do alegado nas conclusões 6ª a 8ª da sua douta minuta recursória, designadamente, quando afirma que:
«A comissão pressupõe uma relação de dependência entre o comitente e o comissário, que autoriza aquele a dar ordens ou instruções a este (poder de direção);
Os gerentes de uma sociedade comercial não são encarregados de uma comissão, mas são eles próprios os formuladores da vontade da sociedade, os titulares de toda a iniciativa e não meros comitidos;
Quando o sócio-gerente de uma sociedade comercial conduz um veiculo desta, tudo se passa como se fosse a própria sociedade a conduzi-lo».
Defende a Recorrente o entendimento de que «para efeitos de presunção de culpa prevista no artigo 503, n° 3, do Cód. Civil, não existe qualquer analogia entre a pessoa do comissário e a do sócio-gerente de uma sociedade», sendo certo que «não foi alegado, nem provado, que os serviços prestados pela Autora DD eram efetuados por ordem e sob direção e fiscalização da sociedade de que era sócia-gerente Padaria ..., Lda.».
Segundo o STJ, bem decidiu o Tribunal da Relação, aliás em consonância com a jurisprudência maioritária desse Supremo Tribunal.
Com efeito, a 2ª Instância, seguindo a posição contrária à enveredada pela 1ª Instância, assim decidiu:
«No circunstancialismo fáctico apurado é inegável que o veículo circulava no interesse do seu proprietário que é a sociedade, e, portanto, por conta daquela, sendo que o facto da sua condutora ter a qualidade de sócia-gerente dessa sociedade não permite concluir que era ela que detinha a direção efetiva do veículo.
Quanto a este aspeto discorda-se da decisão recorrida, pois, não colocando em crise a afirmação que o gerente de uma sociedade fixa os objetivos da mesma, em ordem à prossecução do respetivo objeto social, toma as decisões pertinentes e a representa, não deixando de ter essa qualidade e esses poderes quando, de forma pessoal contribui com o seu próprio trabalho para a concretização do objeto social da empresa que gere, o certo é que a sua qualidade de sócio ou gerente não se confunde com a titularidade do veículo pertencente à sociedade, não se refletindo, pelo menos diretamente, na sua esfera jurídica os efeitos que possam advir da condução que faça daquele veículo.
A propriedade do veículo pertence à sociedade ainda que a disposição que se venha a fazer da utilização do mesmo seja, como no caso das pessoas coletivas, objeto de decisão das pessoas que a representam, as quais, concomitantemente, podem eles próprios serem os executantes dessas decisões.
Não deixando de existir, neste caso, uma clara distinção entre o titular da propriedade do veículo, no interesse do qual ele é conduzido, e a pessoa que o conduz, apesar da relação orgânica que com ele mantém, subsistem ainda os fundamentos do estabelecimento da presunção legal que se apoiam na existência de um menor cuidado por parte do condutor com a sua manutenção e regular funcionamento, assim como, segundo as regras da experiência este não sente de igual modo que um proprietário o risco da danificação ou inutilização do veículo.
Apesar de ser sócio-gerente da sociedade proprietária, ele não se considera o seu dono, encarando-o como pertencendo a outro património, no qual ele tem interesses, mas que não é o seu património.
De igual modo, também neste caso, a indiciação de que estamos perante um condutor profissional, mais habilitado, de quem se pode exigir especial perícia na condução e que, mais facilmente do que o comum dos condutores, pode identificar e provar a causa do acidente capaz de afastar a presunção legal da sua culpa, uma vez que a Autora conduzia o veículo interveniente no acidente no exercício da atividade da sociedade, na sua qualidade de gerente, revelando um desempenho profissional.
Assim, não pode ser impeditivo do funcionamento da presunção contida no nº 3 do art. 503º do C. Civil o facto de a condutora ser sócia-gerente da sociedade proprietária do veículo, justificando-se que sobre si, enquanto condutora por conta daquela, recaia o ónus de afastamento daquela presunção de culpa.
Aquele que tem a seu favor uma presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz - art. 350º, nº 1, do C. Civil -, não competindo à Ré a prova de que o embate procedeu de culpa da Autora, mas, pelo contrário, era esta que se encontrava onerada com a tarefa de demonstrar que tal acidente não se ficou a dever a culpa sua.
Não tendo logrado fazer essa prova, como bem evidencia a sentença recorrida, a solução não passa por uma repartição de responsabilidades, mas sim pela consideração de que a culpa pertenceu à Autora, pelo funcionamento da presunção estabelecida no artigo 503º, nº 3, do C. Civil.
Sendo considerada sua a responsabilidade pela ocorrência do acidente, não tem a Autora direito a ser indemnizada dos prejuízos por si sofridos, pelo que a ação por ela proposta deve ser julgada improcedente, com a consequente absolvição da Ré recorrente.
Procedendo este primeiro fundamento do recurso, fica prejudicada a apreciação do segundo fundamento, pelo qual se impugnava o valor da indemnização fixada pela sentença recorrida.
Nestes termos deve ser revogada a decisão recorrida na parte em que julgou parcialmente procedente a ação nº 1291/04.3TBVNO».
A fundamentação dogmática desta posição não oferece dificuldades de monta, como se passa a demonstrar.
Como ensina o Prof. Pereira de Almeida, «os gerentes têm competência para administrar e representar a sociedade, dentro do quadro legal, mas, ao contrário dos administradores das sociedades anónimas, devem obediência às deliberações sociais, ainda que anuláveis e alguns atos dependem mesmo da autorização da assembleia geral» ( destaque nosso).
Os gerentes devem praticar os atos que forem necessários ou convenientes para a realização do objeto social, com respeito pelas deliberações dos sócios ( art. 259º do CSC), como também ensina o mesmo Ilustre Professor.
Quanto às formas de designação para o cargo de gerente, o mesmo pode ser designado no pacto social ou eleito posteriormente por deliberação dos sócios ou nomeado por outra forma estabelecida nos estatutos. Relativamente à cessação das suas funções, para além das formas da caducidade e da renúncia, existe a forma da destituição e, segundo ainda as doutas lições de Pereira de Almeida, «não são aplicáveis aqui os princípios do direito laboral, podendo o gerente ser destituído «ad nutum», isto é, sem justos motivos, apenas tendo, neste caso, direito a uma indemnização - art. 257º, nº 7 - sem que possa ser impugnada a deliberação de destituição por falta de fundamento».
Como todos os gestores das sociedades comerciais, também os gerentes das sociedades por quotas estão vinculados ao dever de cuidado (duty of care), indissociável de atuação procedimentalmente correta, por forma a não prejudicar ou colocar em risco não permitido o património da empresa.
Afigura-se-nos claro que, dentro deste quadro legal, o gerente não pode sentir-se nem atuar como dono da empresa/sociedade, nem confundir-se com ela, por força dos seus poderes representativos, antes devendo considerar-se um prudente gestor, cônscio da sua responsabilidade para com a sociedade comercial (art. 72º/1 do Código das Sociedades Comerciais), assim como da sua responsabilidade para com os credores sociais ( art. 78º/1 do CSC), pois sobre os gerentes impende o dever de diligência que o referido Código das Sociedades Comerciais enuncia pela forma seguinte:
Art.. 64º
(Dever de diligência)
Os gerentes, administradores ou diretores de uma sociedade comercial devem atuar com a diligência de um gestor criterioso e ordenado, no interesse da sociedade, tendo em conta o interesse dos sócios e dos trabalhadores.
Na dimensão considerada, é patente e inarredável que se verifica uma subordinação jurídica do gerente (ainda que simultaneamente sócio) à sociedade, que não se confunde com o vínculo de subordinação jurídica do trabalhador à entidade patronal, no contrato individual de trabalho.
Tanto basta para que seja legítimo considerar-se verificada uma situação de comissão para efeitos do nº 3 do art. 503º do Código Civil, num caso como o que ora nos ocupa.
Nas palavras bem concretas e inequívocas do eminente e saudoso civilista que foi o Professor Antunes Varela, «o termo comissão tem aqui o sentido amplo de serviço ou atividade por conta e sob direção de outrem, podendo essa atividade traduzir-se tanto num ato isolado como numa função duradoura, ter caráter gratuito ou oneroso, manual ou intelectual, etc.
A comissão pressupõe uma relação de dependência (droit de direction, de surveillance et de contrôle, na expressão da jurisprudência francesa) ou instruções a este, pois só essa possibilidade de direção é capaz de justificar a responsabilidade do primeiro pelos atos do segundo».
Não há dúvida de que os sócios gerentes, constituindo órgãos diretivos e sendo representantes de uma sociedade, participam na formação da vontade social, agindo no âmbito de um contrato de mandato e, em regra, não por contrato de trabalho subordinado (neste sentido, cfr. o Ac. deste Supremo Tribunal, de 29-09-1999 in BMJ, 489º-232).
Porém, tal participação não identifica a vontade psicológica do gerente com a vontade da pessoa coletiva, embora aquela se deva subordinar a esta, já que, como ensinou Raul Ventura, «na gerência das sociedades por quotas - como, aliás, na administração de todas as sociedades e até de pessoas coletivas, em geral - há que distinguir dois setores: a gestão (também chamada administração stricto sensu) e a representação».
É na posição de gestão e/ou na prática de uma atividade executiva da sociedade que o gerente, distinguindo-se sempre da própria sociedade que gere, conduz a viatura da sociedade em nome e no interesse desta, assim agindo como comissário, sendo comitente a sociedade proprietária do veículo.
Não se afigura essencial a alegação da factualidade integrante do poder de direção da sociedade (ordens, direção e fiscalização) sobre o gerente, pois tais factos integram o quadro legal da função de gerente, embora distinta da subordinação jurídico-laboral que permite distinguir o contrato de trabalho subordinado de outras figuras afins, tais como o contrato de prestação de serviço, de mandato, de agência, etc.
O que o art. 500º, nº 3, do Código Civil exige é a condução por conta de outrem e o sócio-gerente que conduz a viatura empresarial, numa atividade de distribuição de produtos da empresa que gere, desempenha tal atividade por conta de tal empresa. Revertendo ao caso sub judicio e como bem decidiu a Relação, «no circunstancialismo fáctico apurado é inegável que o veículo circulava no interesse do seu proprietário que é a sociedade, e, portanto, por conta daquela, sendo que o facto de a sua condutora ter a qualidade de sócia-gerente dessa sociedade não permite concluir que era ela que detinha a direção efetiva do veículo».
Face ao exposto o STJ entendeu negar a revista, confirmando o acórdão recorrido.